Que populações priorizar quando há recursos escassos para a execução de políticas públicas de saúde? Como lidar com as informações dos pacientes em meio à epidemia de zika diante da urgência de se compartilhar dados para garantir o avanço dos estudos sobre a doença? Dilemas éticos como esses estiveram no centro das discussões da quarta edição do seminário Global Health Ethics na última quinta-feira (5/5). Iniciativa do Centre for Global Health Histories da Universidade de York e da Organização Mundial da Saúde (OMS), o evento é promovido pela primeira vez na América, com organização da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).
A importância das discussões éticas relacionadas a questões de saúde global e de saúde pública foi ressaltada pela conselheira regional em bioética da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), Carla Saenz. “O trabalho em saúde pública tem silenciado muito no que se refere aos temas de ética. Assumiu-se que promover a saúde da população é algo fácil e que ter boa intenção basta para fazê-lo de maneira ética”, diz. Ela rechaçou a visão de que as questões éticas possam resolvidas puramente recorrendo-se à legislação. “Assumiu-se que a lei resolve todas as questões éticas. Porém, não se tratam de problemas da lei. A lei não deve governar toda a nossa vida moral”, afirmou.
Diante da atual epidemia de zika, por exemplo, e das questões éticas que surgem em relação ao seu enfrentamento e ao desenvolvimento de pesquisas sobre a doença, a Opas desenvolveu um relatório com recomendações de ética sobre o tema, revelou Carla. O documento, que será lançado em algumas semanas, trará orientações em três campos. Referente à atenção à saúde, o primeiro será dedicado à questão das mulheres em idade fértil, que inspiram maior atenção em razão dos riscos a que estão expostas. Outra seção, voltada à saúde pública, analisará como levar adiante intervenções de vigilância. Por último, o relatório abordará questões relativas a pesquisa.
“Não sabemos muitas coisas [sobre a doença], e tomar decisões é muito desafiador, então o tema final é a pesquisa, sobretudo a pesquisa com seres humanos”, disse Carla, sem adiantar quais serão as recomendações do relatório em cada um dos três campos. Elaborado a partir de consultas a especialistas em bioética da região, o documento está em revisão e, depois de passar por um processo de aprovação, estará disponível gratuitamente na página da Organização Pan-americana da Saúde.
Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz) Sergio Rego, dedicado à temática da bioética, afirmou que as decisões sobre saúde pública não devem ser tomadas apenas por autoridades ou profissionais da área. “Em relação ao zika vírus, por exemplo, haverá uma série de decisões muito importantes que não devem ser levadas à frente sem que o debate seja estendido à sociedade. Como e por quem a vacina e medicamentos serão testados? Como dar suporte às crianças com microcefalia e outras lesões neurológicas ocasionadas pelo vírus? A mulher terá o direito de interromper a gravidez? É preciso colocar reflexões como estas nas ruas e nos gabinetes para planejar previamente as ações”, avaliou.
Zika: os desafios bioéticos do compartilhamento de dados
Ao abordar a importância da coleta de dados em momentos de epidemias, Abha Saxena, da Organização Mundial da Saúde (OMS) também reforçou a necessidade de se envolver a população nas discussões. “Há muitos desafios implícitos na coleta de dados que devemos endereçar abertamente. Como coletar dados e manter as pessoas envolvidas de forma a inspirar-lhes confiança?”, questionou.
Na avaliação dela, da epidemia de ebola na África até o atual surto de zika, houve avanço no debate de questões referentes aos limites do compartilhamento de informações. “Uma vez que os dados sejam coletados, o que se deve compartilhar? Com quem e em que medida deve-se compartilhá-los de forma a evitar a estigmatização das populações das quais esses dados foram coletados?”, questionou Abha.
A importância de se levar em considerações os pontos de vista locais no que se refere a questões de saúde global também foi defendida pelo diretor do Centre for Global Health Histories, Sanjoy Bhattacharya. “A bioética nos permite desenvolver um enquadramento moral e equitativo a partir do qual podemos fazer uma pesquisa e entender melhor as pessoas que estamos tentando ajudar”, disse. “Uma vez que se entenda que as considerações éticas locais são importantes, é preciso compreender a política, a economia e os determinantes sociais locais para que se gerem políticas públicas adequadas.”
Para a pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz Magali Romero Sá, uma das organizadoras do seminário, importantes discussões bioéticas atuais - como as que foram travadas no evento -devem ser ampliadas e levadas além dos círculos científicos. “Há diversas discussões éticas em pauta hoje, no que se refere à zika e à microcefalia, como a questão das mulheres grávidas e o debate sobre o aborto. Há ainda a questão da utilização de mosquitos transgênicos e inoculados com a bactéria Wolbachia como forma de combater doenças como zika e dengue. É preciso explicar à população por que isso está sendo feito e quais os benefícios esperados”, disse.
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